Habilidade de negociação, típica de seu povo, diz, serve para alavancar pauta ambiental
“Vou votar com vocês, viu?”, avisa o deputado Danilo Forte (União-CE) ao passar por Joenia Wapichana (Rede-RR) em um dos corredores da Câmara dos Deputados, em Brasília.
“Está ótimo”, ela devolve, com o polegar em sinal de joia. “Eu converso com todo mundo”, vira em seguida à reportagem da Folha, que acompanhou dois dias da agenda da parlamentar no final de junho.
Única mulher indígena eleita no Congresso, Joenia é apenas a segunda representação indígena na história do Parlamento brasileiro. A primeira foi há 40 anos, com a eleição do xavante Mário Juruna (1943-2002), eleito pelo estado do Rio de Janeiro no PDT.
Mas a condição de minoria é usada como alavanca para o protagonismo da parlamentar. Ser a única representante dos povos indígenas, ela conta, foi um dos argumentos que lhe garantiu assento durante todo o mandato na comissão mais importante, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania), que controla a constitucionalidade dos projetos de lei em tramitação, podendo até vetá-los.
Minutos antes de cruzar com Forte no corredor, ela havia lhe telefonado e pedido para que ele corresse até a reunião da CCJ. A pedido dela, deputados apareceram na reunião no último dia 28 para votar pela manutenção da pauta do PL 3.074/2019, que é relatado por Joenia e prevê a cooficialização das línguas indígenas nos municípios com comunidades indígenas.
Apesar do apoio majoritário para que o PL permanecesse na pauta, a proposta recebeu pedido de vista do deputado Gilson Marques (Novo-SC). “Quanto custa viabilizar isso?”, diz Marques.
“Isso não é algo polêmico. Já existe em vários municípios”, Joenia afirma pausadamente. “Dizem que é inconstitucional porque não conhecem o artigo 231 da Constituição. Vou ler para vocês: ‘são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens’.”
A tranquilidade, embora pareça não corresponder ao momento de embate, é usada por ela para costurar apoios nos bastidores das reuniões.
Entre sorrisos e apertos de mãos (acompanhados por recorridas ao álcool em gel), a deputada sobe duas vezes à mesa da presidência da CCJ e conversa reservadamente para pedir que seja a relatora da PEC 37/2021, sobre a inserção do direito à segurança climática na Constituição.
“Soube que uma pessoa que não é da área ambiental queria essa relatoria, então me adiantei”, conta à Folha.
No final do dia, a assessora Lucia de Oliveira entra em sua sala para confirmar. “Pronto, a senhora já é a relatora da PEC [37/2021]”, avisa.
Os 36 projetos de lei de autoria ou coautoria da deputada abarcam propostas sobre saúde, educação e auxílio emergencial. O foco se volta, porém, às questões ambientais e indígenas, com propostas que pedem a suspensão de validade do CAR (Cadastro Ambiental Rural) em imóveis com desmatamento ilegal, a criação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas e a proibição de autorização para pesquisa de mineração e concessão de lavra em terras indígenas.
Em 5 de julho, seu primeiro projeto de lei foi aprovado e virou lei, após ter sido vetado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). Ele havia rejeitado o inteiro teor da proposta que troca a nomenclatura do dia 19 de abril, de Dia do Índio —termo associado a falas preconceituosas— para Dia dos Povos Indígenas, um sinônimo de povos originários. O Congresso derrubou o veto presidencial em sessão conjunta.
“Rídiculo ele, né? Vetou o projeto que é só uma terminologia, mas que significa muito para a gente, que é o Dia do Índio, que o branco deu para a gente e foi usado para nos diminuir”, dizia Joenia em reunião da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) no final de junho, pedindo apoio para reverter o veto. “E não somos só um povo, somos povos, não somos só um índio.”
No segundo dia em que a reportagem acompanhou a rotina de Joenia em Brasília, ao receber no gabinete um grupo do primeiro escritório de advocacia popular do país com advogados indígenas, o Ybi, ela lembra ter sido uma pioneira na área.
Foi a primeira mulher indígena a se tornar advogada no Brasil, em 1997, pela UFRR (Universidade Federal de Roraima). “Mas na época eu não sabia, estudava muito para terminar logo. O curso era de cinco anos e eu fiz em quatro”, conta.
Os dois filhos da deputada nasceram enquanto ela cursava a faculdade. Mas ela prefere não falar sobre a vida pessoal, já que a família convive com ameaças.
“Quando voltei já formada advogada para o território, vinham me procurar para resolver os conflitos, invasões. Eu já tinha um trabalho na faculdade, mas tive que largar para atender as demandas das comunidades indígenas.”
Uma delas foi a defesa da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Com o caso, Joenia se tornou a primeira advogada indígena a fazer uma sustentação oral no STF (Supremo Tribunal Federal), em 2008.
O partido, a Rede Sustentabilidade, foi escolhido pelos princípios e pela liberdade de posicionamento, diz.
Agora, aos 49 anos, ela busca a reeleição, contando com o apoio dos indígenas e também dos não-indígenas do estado de Roraima.
“Procurei representar, através das emendas, que busco melhorias na vida de todos, não só dos que me apoiam”, conta, de pé no seu gabinete, enquanto oferece torradas com geleia. “É feita da emenda que eu destinei”, afirma, em referência a uma emenda destinada à Embrapa de Roraima. É de lá que vem a geleia, feita de banana.
Em um bloco de notas da mesa da assessoria no gabinete, repousam lembretes: “postar mais stories”; “vazio nas redes sociais”. A prioridade, entretanto, tem sido outra: a articulação nos bastidores.
Autora da proposta de criação da comissão parlamentar que investiga as circunstâncias por trás do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, Joenia negociou com a presidência da Casa para que votassem a sua proposição —mais abrangente do que a primeira, elaborada pelo PT. Em compensação, convidou um deputado petista, José Ricardo (PT-AM), para presidir os trabalhos, ficando como vice-presidente.
No dia seguinte à visita da reportagem, Joenia embarcaria para Atalaia do Norte (AM), cidade onde ocorreu o crime.
“Não é só com arco e flecha que se luta. Aqui a nossa arma é a caneta”, conclui.
Já são quase 19h quando a deputada desce ao plenário da Câmara para fazer seu discurso em repúdio aos episódios recentes de violência contra indígenas pataxós e guarani kaiowás —um deles, Vito Fernandes, foi morto por tiros durante uma operação policial em Amambai (MS) em 24 de junho.
Minutos antes, o deputado Loester Trutis (PL-MS) pede a palavra e se solidariza com os policiais. “Quem não quiser tomar tiro, não entre em propriedade alheia”, afirma.
“Eu ouvi o parlamentar e acredito que não é esse o comportamento que devemos ter como autoridade”, responde Joenia em seu discurso, sem alterar o tom usado nas reuniões ao longo do dia.
“Imagine se o indígena fosse flechar todos que entram nas terras indígenas? Garimpeiros ilegais, madeireiros?”, questiona o plenário da Câmara. “A gente solicita que as autoridades investiguem e punam com o rigor o que a lei determina”, conclui a advogada.
RAIO-X
Joenia Wapichana, 49
Pertence à comunidade indígena Truaru da Cabeceira, na região do Murupu, em Boa Vista. Formou-se em direito na UFRR (Universidade Federal de Roraima) e fez mestrado na Universidade do Arizona (EUA). Na Câmara dos Deputados, é a líder do seu partido, a Rede Sustentabilidade, e uma das vice-líderes da oposição
ENTENDA A SÉRIE
Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanha ainda as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU em novembro, no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations